Se Erving Goffman vivesse no Brasil, neste século, morreria de vergonha ao ver a que ponto chegou o tema objeto de seus estudos, nos anos 60: “desempenho de papéis”.
Dramatizar, fantasiar ou maquiar a postura é um comportamento natural em todos nós. Uns fantasiam mais, outros menos, dependendo das circunstâncias e do que é desejado naquele momento.
Ocorre que, nos últimos tempos, temos visto farsas, encenações atrevidas, por meio das quais os protagonistas querem nos fazer acreditar em coisas inacreditáveis. Com certeza, sabem que não estão procedendo de maneira digna e não estão nem um pouco preocupados com a forma como serão interpretados, evidenciando, explicitamente, o que Goffman, autor de “A representação do Eu na Vida Cotidiana”, poderia chamar de “comportamento cínico”.
Goffman explica que na encenação há um ator – a pessoa que desempenha um papel procurando parecer aquilo que não é – e a platéia – os interlocutores que acreditarão ou fingirão acreditar no que estão vendo e ouvindo.
Há atores que maquiam a sua postura de maneira treinada, portanto, pré-concebida. Sabem muito bem como querem ser vistos e discursam com total segurança e domínio de si próprios, ainda que estejam mentindo descaradamente. Correm o risco de serem desmascarados, mas isto não os assusta. E há os atores que não têm intenção deliberada, não se percebem fingindo, e imaginam que os seus interlocutores acreditam na fachada que estão apresentando.
papéis para iludir, sem se preocupar com a repercussão, esses atores pressupõem que estamos todos imbecilizados. Ou encantados com o seu desempenho. Do nosso lado, é certo que estamos excessivamente acomodados, tolerantes e resignados, acreditando docilmente na fachada que apresentam. A realidade é que, para essas pessoas, transparência é um atributo fora de moda e foi substituida pela arte de mentir.
A atitude de fantasiar – ou de dramatizar – ocorre em todos os níveis sociais, mas, principalmente, quando se está exposto à mídia ou a uma plateia. Acontece tanto na vida corporativa, quanto na pública, que são palcos bem apropriados para os seres humanos se exporem, desempenhando papéis, encenar, parecer o que não é. Enfim, criar uma imagem que não é a verdadeira com intenção de demonstrar poder, status, riqueza, competência, domínio ou seja lá o que for.
Há exemplos curiosos de encenação, notadamente, na vida pública. Atente para o político que aparece na tela de maneira agressiva, quando é questionado ou quando defende qualquer idéia ou projeto de sua conveniência. Esse tipo de atitude, que expõe arrogância e truculência, é adotado por inúmeras personalidades e parece ser produto de treinamento inspirado nas idéias de Michel Debrum – sociólogo, autor, entre outros, de “O Fato Político”.
Na vida corporativa há exemplos similares. Citemos o caso de profissionais contratados por empresas que necessitam de mudanças rápidas e radicais. São os que desempenham o papel de “salvadores da pátria”. Eles começam “arrumando a casa”, demitindo os que podem lhes oferecer algum tipo de resistência, e massacrando os que ficam para que fique claro quem é a autoridade. Para ajudar no processo de salvamento, trazem profissionais de sua confiança, solidários, que os ajudarão nesse desafio. Esse sufoco dura, em média, dois anos e, nesse, período, as pessoas assistirão shows de egocentrismo, autoritarismo e belicosidade. No final desse prazo, o “salvador” será demitido, deixando a empresa traumatizada e em situação pior do que estava quando da sua chegada.
Voltemos à vida pública. Vejamos o herói nacional, a vedete, aquele que se auto- glorifica. No seu discurso se enaltece, atribuindo a si próprio mudanças fantásticas, decisões corajosas que nunca foram tomadas antes e ousadia diante dos problemas, prometendo o que pode e o que não pode proporcionar. Tudo de bom é feito por ele, tudo de ruim que está acontecendo, ou acontecerá, é de responsabilidade dos outros. Gosta de ser bajulado e venerado, odeia críticas, é exclusivista e adora som de trombetas, quando se apresenta. Narcisista, manipulador, quase Messias.
Michel Debrum, mais uma vez, parece ser a fonte de inspiração desses cidadãos : “O herói também fornece a certeza. Tendo o domínio da segurança, ele ajuda a vencer a angústia, a incerteza dos períodos difíceis e de mudanças. Atrás de seu guia, o povo se sente seguro. Porque o herói não pode errar. Ele sempre enxerga mais longe, mais claro e mais certo”, diz o sociólogo.
O melhor que podemos fazer é apresentar um outro modelo de desempenho de papel no mundo corporativo. Este deveria servir como modelo tanto para os atores no palco empresarial quanto no público:
Jim Collins, em seu livro “Empresas Feitas para Vencer”, identificou onze empresas que tiveram sucesso durante vários anos seguidos. Na pesquisa que realizou, descobriu uma caracteristica comum nos principais dirigentes dessas organizações: eram profissionais que tinham toda a sua preocupação voltada para o sucesso das empresas e não para si próprios, seus bônus, status ou prestígio.
Esses líderes, nas raras ocasiões em que eram entrevistados, não falavam de si próprios e atribuiam o sucesso de suas corporações aos funcionários. Segundo Collins, esses líderes nunca sonharam em se tornar heróis universais: “Não aspiravam ser colocados num pedestal, nem se tornarem ícones inatingíveis. Consideravam-se pessoas comuns que produziam resultados extraordinários em silêncio”, relata.
Nos tempos atuais, devemos acreditar em poucos atores. É conveniente manter afinada a percepção quando vemos ou ouvimos outras pessoas, não importa em que palco. É preciso interpretar o que há por trás da fachada e perceber as evidências de cinismo. Não é difícil perceber quando falta transparência ao interlocutor que está na tela ou em nossa frente.
O comportamento contrário ao chamado de “cínico” é o comportamento “sincero”. As pessoas que apresentam essa modalidade de papel acreditam na impressão criada por sua representação, são transparentes, confiáveis e merecem o nosso apoio, ou fazer parte do nosso círculo de relacionamento.